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Contencioso Epistémico – Cooperação Amigável-Hostil dos Investigadores | José B. Duarte | 30 de dezembro de 2022

Não é a objetividade do cientista individual, mas da própria ciência (o que se pode chamar a cooperação amigável-hostil dos cientistas – ou seja, a sua disponibilidade para a crítica mútua) que constitui a objetividade (Popper, 1999, p.122)

 

Um desafio às inspeções educacionais

O Memorando de Bratislava (2013) constitui uma proposta de salto qualitativo para a inspeção escolar. Esse Memorando foi elaborado pela Conferência Internacional Permanente das Inspeções (SICI, na sigla inglesa) e propõe que as inspeções membros dessa conferência (entre as quais a portuguesa) passem de uma tradicional regulação rotineira das escolas para uma prática de acompanhamento e inovação, com base em observação, análise conjunta e procura de soluções dinamizadoras de uma nova escola.

A mudança de uma visão “gerencialista” para uma cultura de abertura e reflexão sobre “o processo de aprendizagem e ensino” (a inversão dos conceitos é significativa no documento) merece uma atenção central daquele Memorando que reconhece a centralidade da interação entre avaliação interna e externa mas condicionada a uma atenção ao que se passa nas escolas em termos de aprendizagem e de ação do professor.

Ora nos Planos de Atividades da IGEC para 2015 e 2016 aparece uma nuance prometedora, que parece influenciada por aquele Memorando, quando são referidas atividades de “Acompanhamento da Ação Educativa” com a pretensão de:

Implementar uma metodologia diferente no trabalho com as escolas, privilegiando um caminho de acompanhamento próximo das estratégias implementadas por cada organização educativa, com especial enfoque nos mecanismos internos de coordenação e supervisão pedagógica do trabalho docente, fomentando e respeitando o espaço de autonomia da escola (IGEC, 2016, p.26).

No Plano de 2017 continua a constar que a IGEC “detém por missão assegurar (…) o controlo, a auditoria e a fiscalização do funcionamento do sistema educativo” (p.12). Mas no mesmo Plano e no Plano 2018, em contradição com uma missão formulada naqueles termos, consta uma perspetiva mais pormenorizadora e humanizadora daquele “acompanhamento”:

Tem como objetivo promover nas escolas uma atuação estratégica face à resolução das suas dificuldades, a reflexão sobre as práticas pedagógicas e o trabalho colaborativo entre os docentes, tendo em vista o alcance de soluções pedagógicas e didáticas que contribuam para que os alunos aprendam melhor (IGEC, 2017, p.30).

Mas atentemos em pormenores essenciais dos recentes relatórios do Programa de Acompanhamento da Ação Educativa, retirados de uma amostra aleatória dos relatórios de 2021/22:

– “Melhoria conseguida: Aprofundamento da reflexão entre docentes em torno de um plano de ações de melhoria coerente e exequível, o que concorreu para o incremento do trabalho colaborativo”.

Pergunta nossa: Onde está esse plano?

– “Melhoria conseguida: – Elaboração de um modelo de matriz cuja conceção envolveu os alunos do ensino secundário, indicando estes a data da realização do teste, os conteúdos a avaliar e a sua localização no manual, os objetivos a atingir e a tipologia genérica das questões, sob a supervisão dos docentes das diferentes disciplinas”.

Pergunta:  Onde está a matriz?

– Grau de consecução das ações. Ação n.º 1 – “O plano de melhoria do Agrupamento foi reformulado e elaborado o respetivo cronograma, cumprindo-se, assim, as metas definidas no Programa de Acompanhamento”.

Pergunta: Onde está esse plano?

De notar que a própria redação do relatório reconhece essa ausência de modo indireto: “Porém, não foram, ainda, concebidos instrumentos de monitorização da implementação das ações, o que pode vir a comprometer a respetiva eficácia”.

Ação n.º 3 – “As atividades foram realizadas na observância rigorosa das metas definidas. Assim, foram elaboradas matrizes comuns para os instrumentos de avaliação sumativa e adotadas, de forma generalizada, práticas de permuta da respetiva correção. Foram, também, identificadas as dificuldades sentidas pelos alunos”.

Pergunta: Onde estão as matrizes?

Retórica ou investigação?

Stake aponta tipos diversos de generalização: “Os materiais de casos naturalistas, etnográficos, de alguma forma, assemelham-se à experiência real” (“parallel actual experience”) (1998, p.94) em que “o leitor é levado a conhecer algumas coisas ditas como se as tivesse experimentado”. Em termos mais gerais, Yin (2005) sublinha a importância da “generalização analítica” p.385) que, oriunda das “inferências lógicas” advindas de um estudo singular, vai consolidar ou reformular conceções do leitor sobre as problemáticas em análise.

Uma inspeção empenhada na inovação e mudança, através do acompanhamento do processo educativo, sem esquecer o seu papel como garante da qualidade e de uma relativa coesão do sistema educativo, pode constituir, num contexto de diálogo e cooperação, um recurso a ter em conta na renovação da escola. Isso implica a junção dos documentos e outros dados das intervenções realizadas, de modo que os leitores possam fazer inferências a partir dos casos investigados. Obviamente tal desígnio requer novos critérios de formação de inspetores, nomeadamente em investigação educacional.

Referências

IGEC (2017). Plano de Atividades.

IGEC (2016). Plano de Atividades.

Popper, K. (1999). O mito do contexto. Em defesa da ciência e da racionalidade. Edições 70.

Stake, R. E. (1998). Case studies. In N.K. Denzin, & Y. S. Lincoln (Eds.), Handbook of Qualitative Research. Sage.

Yin, R.  K. (2005). Introducing the world of education. A case study reader. Sage.

   

José B. Duarte. Doutoramento em Ciências da Educação pela Universidade de Nantes em 1997. Maîtrise (1992) e DEA (1993) pela Universidade de Nantes e Licenciatura em Filologia Românica (1968) pela Universidade de Lisboa. j.b.duarte@netcabo.pt

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